Como o Cellbit arruinou minha vida

 

ATENÇÃO: A SEGUINTE HISTÓRIA É 100% FICCIONAL, E QUAISQUER SEMELHANÇAS COM A REALIDADE SÃO PURAMENTE COINCIDÊNCIAS!

Era uma tarde de domingo, e eu estava no pior lugar do mundo. Havia uma hora em que estava ouvindo outras pessoas falarem, aguardando a minha vez. Só duas pessoas haviam dado seus relatos até agora. Os relatos eram desnecessariamente longos, e davam detalhes demais. A ira e ansiedade tomavam conta de mim, enquanto ouvia um magrelo esquisito de óculos falando sem parar. O local não ajudava, era escuro e com cheiro de mofo. Ao olhar ao meu redor, vi outros esquisitos, como eu. Alguns estavam retraídos, alguns se balançavam ansiosamente.

-... e foi assim que eu ganhei uma ordem de restrição, não posso ficar mais a um quilômetro e meio da casa dele - encerrou o magrelo

-Muito bem, Darci. Seu relato exige bastante coragem. Eu irei conversar melhor contigo individualmente depois que a reunião de hoje acabar, pois ainda temos muita gente pra ouvir. Agora, vamos ouvir... Você - disse a psicóloga que coordenava a reunião, apontando em direção a mim

-Eu? - disse eu, incerto se ela apontava em minha direção ou da pessoa ao meu lado

-Sim, você. Qual é seu nome?

-Me chamo Mateus.

-Seja bem vindo Mateus. O que te traz aqui? Fique a vontade pra nos contar sua história.

-Ééé... - um nervosismo repentino me bateu, mas o engoli, respirei fundo e comecei - Eu sou Mateus, tenho 22 anos e sou viciado em Cellbit.

-Um viciado em tratamento. Mas e ai, como começou? Conta pra gente.

Tudo começou em 2012, quando o Youtube crescia para ser o que se tornou hoje em dia. Eu gostava de assistir youtubers, apesar de não ser tão assíduo. Como bom jogador de Minecraft, eu assistia o Monark e o VenomExtreme, mas era mais porque meus amigos no colégio gostavam e eu queria me enturmar. Nunca senti muita conexão com nenhum dos dois. 

Um dia, depois de assistir um vídeo do Monark, fui ver os vídeos recomendados. Lá estava ele, com aquele sorriso. Aquele maldito sorriso. Além de olhos azuis, como farois de neon. Sem saber aonde isso iria me levar no futuro, cliquei. Fiquei compenetrado naquela gameplay.

-Esse cara é engraçado - pensei.

Fiquei tão entretido com aquele vídeo que nem percebi o tempo passar. Quando acabou, automaticamente dei joinha e me inscrevi.

Nos dias subsequentes, maratonei todo o conteúdo do canal de Cellbit. Era como uma fome insaciável pelos conteúdos dele. Todo momento livre que tinha usava para assistir o canal dele, e quando não podia assistir, ficava ansioso para que o que estivesse fazendo acabasse logo para que pudesse voltar a ver os vídeos. Mas, como nem tudo são flores, em uma semana já tinha esgotado todos os vídeos. O que iria fazer agora?

Resolvi pesquisar "Cellbit" no Facebook, na esperança de ver algum conteúdo novo, já que meu nervosismo e obsessão não me permitiam esperar por um novo vídeo. Encontrei a página dele, curti e fui ver os posts. 

Logo, este se tornou meu novo vício, enquanto não saíam vídeos novos. Chegava da escola, ia diretamente para frente do computador e ia ver os posts do Cellbit. Lia todos os comentários, porque eu queria ter certeza de que não estava perdendo nada. Até que vi que em todos os posts tinham comentários de uma pessoa chamada "Maicossuel Bitos", sempre com muitas curtidas, e pessoas falando que ele havia "mitado". Achei legal, então adicionei ele. Ele aceitou rápido, estava online. Então, resolvi chamá-lo para conversar.

-eae blz? - enviei

-dae. Qm é vc? - respondeu Maicossuel

-meu nome é mateus, te add lá da página do Cellbit

-ah suave.

Dali em diante, conversamos bastante. Até que ele me perguntou:

-ow tu gosta mesmo do Cellbit hein? Sabe as fala dos vídeo de cor e tudo

-gosto... - respondi

-eu sou amigo pessoal dele, vo contar isso pra ele kkkk - falou Maicossuel

Fiquei sem reação. Mas daí pensei um pouco mais e disse:

-tem como vc me passar o número dele?

-pq q tu qr?

-só pra conversar msm - respondi

-passo, mas não de graça

A situação mudou a partir daí. Fiquei pensando no que poderia fazer. Mas cheguei a conclusão que, para conversar com o Cellbit, valia a pena.

-ta blz. Quanto vc qr?

-300 reais

-O que? - escrevi eu, surpreso pelo quanto ele havia pedido. 

-vc qr ou não qr irmão?

Aonde eu iria arrumar 300 reais? Pensei, até o momento em que me veio uma ideia. Eu sabia onde arranjar o dinheiro. Correndo, fui até a carteira da minha mãe, aproveitando que ela estava dormindo, e peguei o seu cartão de crédito.

-quero! - respondi - vc aceita cartão de crédito?

-cartão de crédito? porra irmão. faz o seguinte, me passa só  os números dele, a validade e o código de segurança, q eu vo fazer uma compra de 300 reais com ele

Confiando em Maicossuel, passei os números. Em seguida, ele passou o telefone de Cellbit. Já era de madrugada, então deixei para enviar mensagens para o youtuber no outro dia.

Na tarde do dia seguinte, quando já havia chegado do colégio, deitei em minha cama, respirei, e resolvi tomar o primeiro passo. Mandei a mensagem para Cellbit.

-oi é o Cellbit? aqui é o Mateus, amigo do Maicossuel!

Fiquei ansioso, esperando a resposta. Depois de 29 minutos, que pra mim pareceram mais uma eternidade, recebo um SMS:

-oi, aqui é ele. Do q vc precisa?

-eu sou mt seu fã cellbit. queria só conversar - respondi

Depois de mais um período longo, ele respondeu:

-ah sim! adoro meus fãs. E ai, curtiu o vídeo dessa semana?

Dali, a conversa desenrolou. Fiquei até de noite conversando com ele, que respondia sempre com bastante atraso. Do meu quarto, ouvi a porta se abrindo, e choros muito altos. Imaginei que fosse minha mãe, chegando do trabalho. Levantei e fui ver do que se tratava.

Minha mãe estava aos prantos, segurando um papel. Perguntei:

-Mãe, o que aconteceu?

Meu pai chegou logo depois, com a cara aborrecida. Minha mãe respondeu:

-Alguém fez uma compra no meu cartão. 5417 reais! Como eu vou pagar isso? - disse ela, chorando.

-Mateus, foi você quem fez isso? - falou meu pai, com um tom levemente inquisitório.

Eu? Eu não tinha feito compra nenhuma! Até que me lembrei... Eu havia passado os números para Maicossuel.

-Não! Não comprei nada! - disse eu, imaginando que o pior estava por vir.

-"Marques Informática LTDA", é o que diz aqui na fatura. Você comprou um computador nessa loja com o cartão da sua mãe, Mateus? - disse meu pai.

-Não! - respondi eu, sem saber o que dizer.

-Pra mim já chega, essa foi a gota d'água. Suas notas estão péssimas, e agora você vai fazer a gente gastar um dinheiro que não temos. Arrume suas malas Mateus, porque aqui você não fica mais.

Fui para o meu quarto, arrumei as malas e parti, sem saber para onde ir. Eu achei que ia ficar mais triste, mas, na verdade, minha cabeça só pensava em uma coisa: Cellbit.

. . .

9 anos se passaram desde o dia em que fui expulso da casa dos meus pais. Desde então, moro com a minha avó, que sempre fez de tudo para mim. Me dava comida, roupa lavada, me mimava de todas as formas possíveis e impossíveis. Mas obviamente, eu não dava o devido valor, costumava achar pouco, e até mesmo gritava com ela quando algo me incomodava minimamente.

-Mas e a escola? Você continuou estudando? - a psicóloga me interrompeu.

-Eu abandonei o colégio assim que saí da casa dos meus pais - respondi

-Então, você trabalha? - ela perguntou.

-Não...

-O que você faz então?

-Eu não faço nada. Apenas fico em casa, assistindo vídeos e lives do Cellbit, enquanto minha avó me sustenta com sua aposentadoria.

-Entendi... mas e sua relação com o Cellbit? Vocês continuaram conversando?

-Bem...

Ao longo desses 9 anos, eu e Cellbit fomos ficando cada vez mais próximos. Pelo menos, era o que eu pensava. Sempre o elogiava pelos vídeos e pelo sucesso cada vez maior que vinha fazendo. Alguns dos melhores momentos da minha vida foram assistindo a série RPG dele, a Ordem Paranormal. Por ser moderador do chat dele na Twitch, me sentia superior. Muitas vezes bania pessoas completamente de graça, apenas por dizerem "oi" no chat, por exemplo. Também defendi ele quando ele mais precisava, ou seja, quando foi acusado de ser desumilde e esnobe, depois de perder no Tetris. Vocês conhecem o caso, não vou ficar dando tantos detalhes.

Minha vida ia bem, na medida do possível. Até que um dia, recebo uma mensagem do Cellbit falando:

-ow cara, ce n quer vir numa pelada dos youtubers não? eu ia chamar o Maicossuel, mas ele não vai poder...

Era a chance de me provar para ele. Então, sem pensar respondi:

-Claro! Pode colocar meu nome lá

Logo depois, pensei comigo mesmo: "O que eu to fazendo?? Eu nunca joguei futebol na vida"! Senti como se minha consciência estivesse chamando a minha atenção. Respondi à minha consciência: "Sim, mas dependendo de quando for, dá tempo de aprender". Minha consciência se aquietou, e mesmo sabendo que poderia dar tudo errado, resolvi seguir este plano.

-Blz, vai ser quarta q vem. O Felipe Neto é qm ta organizando - respondeu Cellbit

Uma semana? Eu teria que aprender a jogar futebol bem em uma semana! De imediato, comecei a procurar escolinhas de futebol na região. Achei algumas próximas de casa. Rapidamente, fui até a carteira da minha avó. Vovó, que estava tricotando na hora, falou:

-Mateus, que que você tá faz... 

-Nada vó, não me enche não - disse eu, voltando pro meu quarto com o cartão de crédito dela.

Me matriculei na escolinha de futebol mais próxima. Na matrícula, estavam especificados todos os equipamentos, como chuteira, meião, caneleira, etc... Sem nem pestanejar, comprei tudo. As aulas começariam na terça que vem, um dia antes do jogo. Pensei comigo mesmo: "Um dia deve ser o suficiente para aprender".

Os dias se passaram, e eu fiquei cada vez mais ansioso para o jogo. Na terça, acordei cedo para ir ao treino. Não acordava cedo fazia anos. Foi um pouco difícil, mas com a ajuda da minha avó eu consegui. Ela estava muito orgulhosa de que eu iria começar a praticar um esporte.

-Mateus, tá na hor-

-Tá bom vó, já to indo - respondi, cortando ela

Fui para o campo da escolinha. Para minha surpresa, ao chegar lá me comunicaram que o treino era infantil.

-Como assim infantil? - disse eu para o zelador do campo.

-Infantil, para crianças, entende?

-Mas eu comprei todo o equipamento!

O zelador olhou melhor para mim, e viu que eu tinha gasto uma grana com todo aquele equipamento. Imagino que ele tenha ficado com pena.

-Tá bom, pode participar do treino de hoje. Mas na próxima, venha num dia que tenha treino para adultos, ok? 

Assenti com a cabeça.

-Vou falar com o treinador.

Voltei a ficar esperançoso. O zelador permitiu minha entrada, e logo avistei o treinador com crianças entre 8 e 10 anos de idade. Ele olhou para mim e disse:

-Você não acha que você tá um pouco velho demais para isso não, moleque?

Fiquei sem palavras.

-Toma esse colete e vai fazer o aquecimento - disse ele, enquanto jogava o colete no meu peito.

Coloquei o colete e fui para o campo. Tinham cones, e as crianças faziam uma rotina muito sincronizada em torno deles. Então, tentei imitá-los. Eles me olharam estranho, tanto por ser novato quanto por ser quase 15 anos mais velho que eles. Fiz uma volta, duas voltas... E meu corpo pediu arrego. As crianças continuaram fazendo, em uma velocidade incrível. Para mim, parecia até algo sobrenatural. Como alguém poderia ser tão rápido?

De repente, ouço um apito. PI PIIIIII! O treinador se aproximou:

-Bora para o treino! Time vermelho de um lado, time azul pro outro!

Instintivamente, as crianças se dividiram para as partes diferentes do campo, enquanto eu olhava para o treinador tentando entender o que isso significava. Fiquei assim até que um garoto me puxou pelo braço e falou:

-Colete vermelho é desse lado, você tá com a gente...

Seguindo o garoto, me posicionei de um lado do campo. Aconteceu alguma coisa lá no meio do campo que até hoje não entendi completamente, e de repente a bola rolou. Vi os garotos do meu time correndo, então comecei a me movimentar também. Bola vai, bola vem... Quando percebi, um dos garotos de colete azul vinha com a bola na minha direção. No momento em que chegou mais perto, não pensei duas vezes: dei um chute com a maior força possível. O problema foi que o garoto tirou a bola no último segundo, e o meu chute acertou em cheio na canela dele.

-AAAAAAAAHHHHHH! - o garoto urrou de dor.

Eu fiquei desesperado, sem saber o que fazer. As outras crianças chegaram mais perto.

-Eu acho que a perna dele quebrou! - disse um dos meninos.

O treinador veio correndo para perto, apitando furiosamente. Ele foi examinar o garoto, que estava em lágrimas. Ele estava com a perna torta. Percebendo o que eu tinha feito, o treinador levantou e disse:

-Vai embora e não volte nunca mais.

Ele voltou a cuidar do garoto. Enquanto isso, eu saí de fininho, com vergonha.

Chegando em casa, minha avó perguntou como tinha sido o treino, e eu não a respondi. Apenas fui em direção ao meu quarto, e passei o resto do dia assistindo cortes da live do Cellbit e vendo o Reddit.

. . .

Chegou o dia: eu finalmente iria conhecer o Cellbit pessoalmente. Para isso, só precisava sobreviver ao jogo de futebol. Eu estava confiante que pelo menos alguma coisa eu tinha aprendido no treino, bastava repetir no jogo. 

Entrei no vestiário do Pacaembu e vi diversos youtubers. Cocielo, Whinderson, Zoio... Até que aparece Maicossuel e me aborda:

-Eae mano, beleza?

-Beleza... Você não tinha dito que não vinha?

-Tinha? Não lembrava...

-Você vai jogar? - disse eu, meio que esperando que ele me substituísse

-Não vou... Tô com uma dor no calcanhar que tá foda. Toma aí - disse ele, entregando um colete.

Peguei o colete e perguntei:

-E o Cellbit? Já chegou?

-Chegou, ele tá ali... - 

No momento em que Maicossuel apontou, um cara entrou no vestiário gritando:

-TODO MUNDO FORMANDO DUAS FILAS, COLETE VERDE NA ESQUERDA, COLETE LARANJA NA DIREITA

O empurra-empurra foi generalizado. Fui obrigado a parar de procurar Cellbit para entrar na fila.

Entramos no gramado. Como tinha gente nas arquibancadas! Eu não sabia direito o que fazer, até que um cara de cabelo colorido que eu não conhecia me puxou pelo braço e disse:

-Você fica no banco. 

Fui para o banco. Por um lado fiquei aliviado de ser reserva. Por outro, frustrado por não poder impressionar Cellbit.

Lá, vi toda a abertura do jogo. Alguns youtubers discursaram, inclusive Felipe Neto. Parecia que o jogo era beneficente, ou algo assim. Vi Cellbit: ele era do meu time, porém titular. 

O jogo começou, e de início eu fiquei muito interessado, juro. Prestava atenção principalmente no Cellbit. Aos poucos fui me entediando, então abri o Reddit do Cellbit no celular para passar o tempo. O primeiro tempo acabou, e eu nem havia percebido, de tão entretido que estava. Olhei para o placar, e nosso time perdia de 1 a 0. Voltei para o Reddit. O tempo passou voando, e o fim do jogo já se aproximava. Até que ouço uma grande gritaria, e resolvo olhar para o campo. O goleiro do nosso time estava deitado no chão, com outras pessoas em volta. Ao pular para tentar fazer uma defesa, o goleiro havia caído de mal jeito, e acabou se machucando. Um cara do meu time veio correndo em direção ao banco de reservas, perguntando:

-Quem pode entrar lá no gol no lugar do Tulinho?

Meus colegas de banco ficaram em silêncio, e até se afastaram um pouco do rapaz que veio até a gente. Era a minha oportunidade. 

-Eu quero. - respondi 

-Beleza, corre lá - respondeu meu colega de time, jogando duas luvas no meu colo.

Coloquei as luvas e pensei: "isso não deve ser tão diferente de ficar na linha". Olhei para o placar, e para a minha surpresa, o jogo estava empatado: 1 a 1. 

O goleiro foi transportado na maca, e eu estava em seu lugar agora. A bola voltou a rolar. Por um bom tempo, ela nem chegou em mim. Até que a vi a bola voando. Felipe Neto recebeu e correu bastante na minha direção. Ele se aproximou, e eu não sabia direito o que fazer. Tentei abaixar para pegar a bola, mas ele a chutou, fazendo com que ela passasse no meio das minhas pernas e entrasse no gol. O estádio vibrou. Pouco depois, o juiz encerrou o jogo.

Meu time me olhou estranho. Muitos olhares de desaprovação e, possivelmente, ódio. Fui para o vestiário, para tentar encontrar Cellbit. Um cara passou perto de mim e disse:

-Mandou bem, otário. 

Quando estava trocando minhas roupas, notei que o Cellbit estava bem perto rodeado de pessoas, em uma discussão intensa. Fiquei olhando para ele, para ver se ele me notava. Finalmente, ele virou o olhar em minha direção, e eu vi aqueles olhos azuis neon. Me senti como na primeira vez que tinha o visto, quando ainda era um adolescente. Ele veio na minha direção, em passos rápidos:

-Que que você fez, hein? Seu arrombado! - falou ele, com bastante raiva.

-Que... que que eu fiz? - disse eu, titubeando.

-Vou te falar o que você fez. Você entregou o jogo, e fez todo mundo aqui perder uma grana!

-Peraí, eu não sabia que tinha dinheiro envolvido!

-Lógico que tem, mas a gente não pode sair falando se não pode dar ruim pra gente. Quem é que te chamou pra vir aqui?

-V... você? - respondi, acuado como um animal indefeso.

-Eu? Não faço a mínima ideia de quem seja você. 

-Como não? A gente já conversa a quase 10 anos! Eu sou até mod no seu canal da Twitch! - comecei a ficar levemente revoltado.

-Eu não sei quem você é. Meu canal tem mais de 100 mods, e se eu conhecer metade desse povo é muito. Qual é seu nick? - perguntou Cellbit, tirando seu celular do bolso

-Mateusbit - falei, com esperanças de que ele se lembrasse 

Cellbit ficou um tempo em silêncio, usando o celular. Olhei para ele atentamente, ainda muito confuso com tudo que estava acontecendo.

-Pronto, agora você não é mod mais e está banido. Some daqui.

-O QUE?? - exclamei, incrédulo. 

-Não ouviu o que eu disse? Pega seu rumo, pobre de merda.

Olhei espantado para as pessoas do vestiário, que me também me olhavam. Percebi que era melhor sair.

====

Voltei a pé para a casa da minha avó, pensando no que eu havia feito de errado. Chovia bastante, mas isso não importava. Eu havia perdido a única coisa que dava sentido à minha vida. 

Chegando em casa, minha avó perguntou como tinha sido o jogo, e eu a ignorei. Fui direto para a cozinha, peguei o sorvete que estava no congelador e fui para o meu quarto.

Passei a madrugada em claro, chorando, comendo sorvete e assistindo os vídeos antigos do Cellbit. Além disso, me questionava o que fiz de errado e se realmente deveria estar assistindo esses vídeos, depois do ocorrido.

Minha cabeça não parava de pensar naquelas cenas, repetidamente. Resolvi me humilhar mais um pouco, e mandar uma mensagem para Cellbit me desculpando. Entrei no Whatsapp e digitei uma mensagem bem articulada para o mesmo número que tenho a quase 10 anos e que costumava conversar todos os dias. A resposta veio mais rápido do que imaginei:

-desculpa pq cara?

Foi ai que, finalmente, eu percebi que tinha algo de errado. Cellbit ontem estava furioso, e eu o conheço, sei que ele não perdoa as pessoas com tanta facilidade. Ele jamais esqueceria do que aconteceu.

Por outro lado, ele parecia não me conhecer ontem. E se o número que eu conversei todos esses anos não era do Cellbit? Será que é isso? Mas ele respondia como se fosse o Cellbit.... Se ele não é o Cellbit, ele só pode ser alguém que o conhece muito b-...

A ficha caiu. 

A única pessoa que eu poderia estar falando é o Maicossuel, já que foi ele quem me passou esse número.

Ao perceber isso, senti uma ira como nunca havia sentido na vida. O ódio tomou conta de mim, e eu comecei a ter um ataque. Joguei meu notebook no chão, espatifando-o em mil pedaços. Ataquei itens do meu quarto, derrubei coisas da mesa, pulei na minha cama e gritei como nunca fiz antes. Assustada, minha avó abriu a porta do meu quarto e falou:

-Que que tá acontec-...

-SAI VÓ! -gritei com toda a força dos meus pulmões. 

Ela saiu. Pouco depois, também saí, cego pelo ódio. 

Fiquei vagando na rua, pensando no que poderia fazer. Depois de muito tempo de andanças sem sentido, resolvi ir até a casa do Cellbit, já que eu sabia onde ele morava.

Cheguei no local, ainda sem saber direito porque estava ali. Fiquei sentado de frente, com a cabeça muito agitada. Cerca de uma hora depois, Cellbit sai de casa, distraído e conversando no celular. Resolvi segui-lo.

Eu não conhecia o bairro que estava, então não tinha ideia de onde ele poderia estar indo. Chegamos numa rua movimentada. Eu estava cansado das andanças, porém andei por mais 45 minutos até ter uma ideia. Eu estava carregando minha blusa de frio. Já fazia calor, então resolvi tirá-la. Nesse momento tomei a pior decisão da minha vida: enrolei a blusa nas duas mãos e decidi que ia estrangular Cellbit. 

Apressei o passo para me aproximar dele. Fui chegando cada vez mais perto, e pouco antes de atacá-lo, uma faísca de consciência se acendeu: "O que eu estou fazendo!!??? Eu não sou um assassino"!

No entanto, já estava próximo demais de Cellbit. No impulso, coloquei a mão no ombro dele e falei:

-Cellbit, queria pedir desculp-...

Ele se virou, dando um salto para trás:

-Que que você está fazendo!? - gritou.

Ele olhou para minhas mãos e, rapidamente, deduziu qual era minha intenção inicial.

-SOCORRO! POLÍCIA! TEM UM POBRE QUERENDO ME MATAR! - gritou ainda mais alto.

-Cellbit, calma... Eu só...-

Fui interrompido por uma força que me carregava para trás. Aquela movimentada avenida tinha um intenso policiamento, que eu não havia percebido antes. 

Enquanto os policiais me seguravam e me algemavam, Cellbit disse:

-Ah, eu reconheço você! Você é o cara que entregou o nosso jogo!

Fui colocado no bagageiro do carro da polícia. No momento em que o carro ia sair, Cellbit gritou:

-Aguarde o processo, trouxa!

Minha história foi interrompida por um comentário:

-Hmm... Interessante. E como foram os dias seguintes? - perguntou a psicóloga

-Foram terríveis. Passei uma semana na cadeia aguardando julgamento, e assim que fui liberado recebi o processo do Cellbit, no qual fui condenado. Era uma ordem de restrição, que me impede de ficar a 2km de qualquer lugar que ele esteja. - respondi

-Que situação chata Mateus... Na próxima reunião vamos tratar disso melhor. Vamos para o próximo depoimento, porque já se passaram 2h e a gente ainda não está nem na metade. Você, pode dar o seu depoimento - disse a psicóloga, apontando para a pessoa do meu lado.

Fiquei desolado. Não obtive nenhum comentário da parte dela além disso. Quando dei uma olhada nas demais pessoas que estavam na sala, notei que algumas até mesmo cochilavam. Frustrado, saí da reunião. Assim que pisei do lado de fora, notei que havia um grande outdoor logo na minha frente. No outdoor, Cellbit aparecia com um controle de videogame, "jogando". Era uma propaganda de provedor de internet. 

Recolhi-me na minha tristeza e insignificância e continuei vagando pelas ruas, sem saber direito o que fazer ou aonde ir.

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